terça-feira, 19 de dezembro de 2017

ICÓ E A ABOLIÇÃO DOS ESCRAVOS

As montagens constantes desta postagem retratam dois momentos: A primeira um acoitamento de um escravo dianta da Igreja da Expectação de Icó, templo por excelência que era de exclusividade da aristocracia branca, e onde posssivelmente estava instalado o tronco e o pelourinho; a segunda imagem, uma festa de frente à Igreja do Rosário.Utilizei fotos antigas das igrejas e gravuras de Debret, um trabalho multimídia.

Tentei com isso idealizar como teriam sido a vida no Icó colonial e como teria sido a festa em Icó quando se soube da libertação dos Escravos de 13 de maio 1888. Ainda que Icó já tivesse abolido os seus escravos em 25 de abril de 1883.



Com certeza a libertação dos escravos no Ceará estivesse fundamentada em uma certa desnecessidade econômica de manter-se os negros cativos. Ali não havia a cultura da açucarocracia pernambucana, nem as elites estabelecidas como no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia.

O Ceará, na verdade, foi a primeira província Brasileira a libertá-los. Daí vem a designação de “Terra da Luz” alcunha criada por José do Patrocínio .
“ Aqueles princípios abolicionistas levaram muitos cearenses a fundarem, em 08 de dezembro de 1880, a Sociedade Cearense Libertadora como forma de unir forças para o movimento que tinha por objetivo a abolição da escravatura. A referida Sociedade criou o seu jornal - órgão de propaganda abolicionista, denominado O Libertador.

Posteriormente, foram sendo criados outros jornais: A Constituição, Pedro II e Gazeta do Norte.

Dessa forma, as idéias abolicionistas ganhavam expressão em todo o Ceará. Formavam-se, também, associações, inclusive compostas por mulheres. O Icó teve participação ativa no movimento abolicionista cearense através do Comendador Antônio Pinto Nogueira Acioly e do engenheiro que construiu o teatro de Icó, Henrique Theberge - também fundador da Academia Cearense de Letras (filho do médico e historiador francês naturalizado icoense, Dr. Pedro Theberge).

Na tela pintada por José Irineu alusiva à sessão de instalação da redenção dos cativos da capital cearense, cujo quadro ornamenta o Palácio da Alforria, são retratadas as respectivas personalidades representativas da cidade de Icó.

Os auspiciosos princípios abolicionistas, nos primeiros anos de 1880, coincidiam, em Icó, com as consequências da terrível seca que durou de 1877 a 1879, causando prejuízos irreconciliáveis, contribuindo para a decadência da cidade, a total dizimação dos rebanhos e a perda do poder econômico dos fazendeiros, dificultando a manutenção das senzalas. Diante de tais fatos, a possibilidade de libertação dos escravos chegava em boa hora.

Assim, em 25 de março de 1883, Icó alforria seus escravos; um ano antes do ato oficial que dava ao Ceará a primazia da libertação dos escravos no Brasil” ¹.
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1. Site da perfeitura Municipal de Icó


obs. Texto atualizado em 17/05/2011

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

CONTO DE NATAL: O NATAL DO PEQUENO ÓRFÃO

Era uma vez um menino órfão. Ele adorava o Natal. Era a época em que ele deixava que sua imaginação voasse para bem longe, para junto do Papai Noel e do Menino Jesus.


Esquecia toda a sua solidão imaginando que na noite de Natal o Papai Noel lhe traria lindos presentes!


Ficava pensando como foi bonito o nascimento de Jesus: Uma noite cheia de estrelas quando os pastores estavam nos distantes desertos e os anjos cantaram no céu. Ficava tão entretido que se esquecia das outras coisas que deveria fazer.


Irritada com o menino a sua madrasta lhe perguntou:


- O que estás pensando, menino?


- Estou sonhando com o Natal, madrinha. Estou imaginando como ficará bela a nossa lapinha!


- E por isso não fazes nada que te mandei fazer? Cuida em varrer o quintal e colher frutas do pomar e deixa essa estória de presépio de lado. Isso é coisa de gente desocupada. Depois trata de dar comida aos porcos, recolha as ovelhas, amarre os jumentos e dê banho no cavalo. Só depois de tudo feito poderás brincar. Estou sendo clara, menino?


Com raiva do pequeno enteado a madrasta foi até a caixa onde guardava o presépio e o jogou no lixo. Era uma forma de castigar o pobre órfão e deixá-lo triste.


Ele porém, na sua infelicidade, foi até o lixo e recolheu os pedaços dos santinhos que estavam quebrados os colou um a um e montou o presépio no fundo do quintal, no meio das plantas, para que sua madrasta não visse e não brigasse com ele.


E assim ele passava os dias que antecediam o natal brincando com a sua lapinha e podia sonhar sozinho sem que ninguém lhe perseguisse.


Porém a madrasta observava cada coisa que o menino fazia e percebeu que ele ficava muito tempo brincando no quintal, descobrindo o que ele fizera com o presépio jogado fora e ficou enfurecida.


- Vou dar um castigo neste moleque desobediente. Ele não perde por esperar, no lugar de trabalhar ele passa o tempo se entretendo com esse "bendito" presépio.


Na noite de Natal o menino esperava impaciente pelo presente que o Papai Noel lhe traria e pediu ao Menino Jesus para que ajudasse ao bom velhinho em sua longa viagem.


Quando acordou, logo cedinho no dia de Natal nada encontrou. Correu até a porta da rua para ver se o Papai Noel havia deixado alguma coisa e nada. Não tinha recebido nenhum presente.


Triste foi até o quintal, no seu cantinho de brinquedos, onde estava o seu presépio só achou cacos espalhados por todo o quintal... tentou juntá-los novamente mas não mais conseguiu.


Chorou, chorou e saiu de casa, caminhou por ruas cheias de malfeitores, por estradas perigosas , quando, de repente um grande caminhão desgovernou-se... e o menino viu uma grande luz e dormiu.


Quando o menino acordou e abriu os olhos estava sentado ao lado do Papai Noel que lhe disse:


- Vou lhe dar um grande presente de Natal, meu menino!


Então o Papai Noel o levou em seu trenó, puxados por muitas renas, percorreu todo o céu, cruzou os planetas, foi muito além e o levou para um lugar muito bonito, como ele nunca tinha visto, cheio de anjos que cantavam e tocavam harpas e ali ele encontrou, que surpresa, seu pai e sua mãe que o abraçaram ternamente e o levaram para onde havia um lindo presépio. Lá estavam São José, Nossa Senhora e o Menino Jesus, que lhe acenou sorridente.


Conto de Washington Luiz Peixoto Vieira




A LAPINHA DE ALMÉRIO

Almério Silva ainda era adolescente quando viveu seus tempos de noviço franciscano, como tantos jovens nascidos na década de 1930. Era Frei Almério, da Ordem Franciscana Maior, os Frades de São Francisco, o idealizador do presépio na Idade Média, cuja ordem preserva o gosto pelos presépios em tempos natalinos.

Imagino que foi dessa experiência religiosa nas terras de Pernambuco que ele idealizou e seu presépio com milhares de peças. As casinhas que formam o cenário da natividade lembram-me os morros e subúrbios das cidades pernambucanas trepadas nas barreiras.

Montada na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, aos fundos da Expectação, por muito tempo a Lapinha de Almério foi única da igreja do Icó. Só na década de 1980 foi adquirido pela prefeitura um presépio em tamanho natural – e por sua idealização – que compunha o arco em frente ao Palácio da Alforria e hoje pertence à paróquia.

São miniaturas de santos e outras figuras de todos os tamanhos, gostos e épocas. Dezenas de bonecas de plástico vestidas de anjos, outra quantidade de camelos, bibelôs, muitos reis magos, carneiros e tantos outros bichos e personagens que foram doados para tal intento.

Ali não há compromisso propriamente estético, há o compromisso com o nascimento de uma única criança.

Não são apenas três reis magos. Está correta esta releitura, pois foi a tradição dos padres da igreja, amparado em evangelhos apócrifos que delimitou a três reis magos, pois eram sábios do oriente para ver o Messias recém-nascido e que seguiram uma estrela em busca da uma criança.

O menino é desproporcional às figuras de seus pais, Maria e José, com o significado de sua dimensão sobre a humanidade.

A Lapinha de Almério, no meio da profusão de cores e imagens traz uma mensagem teológica muito profunda: O nascimento de Jesus meio ao mundo e as profecias dessa centralidade cristológica. 

Todavia, pelo cenário, que são réplicas em miniatura das casas antigas, o nascimento de Jesus se dá na periferia do Icó. E nisso há uma contextualização do nascimento de Jesus no meio dos pobres do aqui e do agora.

Mais do que um Patrimônio Imaterial do Icó - que deveria ser tombado - traduz uma bela mensagem para o nosso tempo tão comprometido com as aparências: Mesmo diferentes os homens e as mulheres de todo o mundo e de cada local, em particular, são iguais perante o Eterno.

Obs .Almério Silva nasceu em Icó em 1924. Foi funcionário do DNER. Formou-se em sua maturidade em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Sousa. Foi chefe de gabinete do Prefeito Aldo Monteiro.



Matérias relacionadas:


http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=215360
http://www.youtube.com/watch?v=V1StbbxM6_w


quarta-feira, 29 de novembro de 2017

RECIFE: FESTA DA CONCEIÇÃO DO MORRO

Hoje se inicia Brasil afora as festas de Nossa Senhora da Conceição. São centenas de festas, talvez milhares, umas maiores outras menores, umas em grandes catedrais, outras em pequenas capelas rurais. Todavia, o meu olhar como ser social está no Recife, é da festa do Morro da Conceição, pois é na imediação deste lugar geográfico que moro e vivo o clima “místico” que invade o Bairro de Casa Amarela e de uma forma geral a Zona Norte do Recife e irradia-se pela cidade inteira.

Diferentemente de outras festas religiosas católicas em que os fiés deslocam-se das periferias para o centro, a festa do Morro da Conceição faz exatamente o percurso inverso: Do centro e dos bairros ricos para a periferia.

De certa forma a Nossa Senhora da Conceição do Morro resgata a figura da Maria de Nazaré histórica, mulher da periferia e a história de Jesus, quando o poder estabelecido sai do centro do poder político e religioso do então Israel do século I da era cristã, à periferia, seja a pequena Belém de Judá: “E tu Belém não és a menor entre as cidades de Judá...”.

O antigo Outeiro do Bagnuolo transformou-se no Morro da Conceição desde 1904 quando Dom Luiz, bispo do Recife mandou construir o monumento em louvor de Nossa Senhora da Conceição. E torna-se no mês de dezembro o “Templo” do Catolicismo Recifense, meio frio, meio sincrético e com ares de libertador-carísmático¹ por parte dos católicos “engajados”.

O olhar do prelado diocesano, naquele iniciar do século XX para os subúrbios recifenses, intuo, não se dava no sentido de “humanizar” a Igreja Católica e levá-la aos pobres e sim evitar que os protestantes conquistassem as populações suburbanas que já construíam desde os finais do século XIX suas habitações nos morros que circundam a cidade antiga e distante dos alagados, geralmente próximos às áreas de antigos engenhos desativados: Um projeto de Cristandade.

Assim a festa do Morro da Conceição, mais que o Carnaval (que é o ápice desse ajuntamento de classes sociais) é o momento em que os ricos, os políticos e as autoridades constituídas visitam e “misturam-se” com os pobres. Madames, vestidas de azul-claro e terço nas mãos, sobem as longas escadarias do morro, pagam suas promessas, vêem os mendicantes, os esgotos que correm a céu aberto pelas valas morro abaixo, sentem os odores e os sons, nem sempre ao gosto da “cheirosa e perfumada” burguesia.

Não pense o leitor que a festa do Morro da Conceição iguale-se em grandiosidade a um Círio de Nazaré - como uma vez me comentou decepcionada uma conhecida minha - mas o Morro se enche de luz e é o momento de ganhar algum dinheiro com a venda de tudo o quanto é possível vender em festa de santo.

É uma festa essencialmente pobre. No alto do morro, até onde a Igreja pode impor suas regras e delimitar seus domínios, só atividades econômicas “pias”, vendas de lembrancinhas (santos, terços, fotos, etc). Embaixo, ao longo da Avenida Norte e Praça do Trabalho, situam-se as barracas de bebidas e os brinquedos dos parques de diversão. É ali que o povão toma a sua cerveja, come seu cachorro-quente, a sua maçã-do-amor, escuta o seu brega e diverte-se até o romper da “barra” da madrugada do 08 de dezembro, quando tudo termina escutando o “Ofício de Nossa Senhora”.

1 Uma mistura dos cacos da Teologia da Libertação dos tempos de dom Hélder e os avanços da Renovação Carismática Católica





sábado, 13 de maio de 2017

O ROSÁRIO DO ICÓ E AS TRADIÇÕES DOS ESCRAVOS

Caminhando pela Rua do Meio, onde moravam os pobres, serviçais e escravos, aos poucos avistamos a fachada do "Rosáro". Certamente a fachada mais bela e harmoniosa das igrejas do Icó, voltada para o coração da cidade, no mesmo costume colonial, onde todas as igrejas voltam-se para a sua Igreja Matriz, onde está o Santíssimo Sacramento, in casu, a Igreja da Expectação.
. Era por ali que os negros cativos peregrinavam em busca de sua "Mãe do Rosário" e por lá, certamente, evocavam os seus orixás, os seus eguns e praticavam seus candomblés em suas lovações a Yemanjá: Odô-fe-iaba! Odô iá! Odô (rio); fe (amada); iyàagba (senhora) - Amada Senhora do Rio (das águas) !





Os brancos sem entender a louvação em Nagô, rezavam: Sancta María, ora pro nobis. Sancta Dei Génitrix, Sancta Virgo vírginum, Mater Christi, Mater divínæ grátiæ, Mater puríssima,Mater castíssima... Kyrie, eléison.Christe, eléison.Kyrie, eléison, mas o rio Salgado cortava, com suas águas de inverno, escutava os louvores e Yemanjá ali habitava.

Não exclusiva dos negros era a estes destinada, todavia os brancos a frequentavam e tinham devoção a N. Srª do Rosário, e muitos nela casaram-se e batizaram-se, como constam registrados nos livros ecleaiais da freguesia.

A Igreja do Rosário do Icó permanece em pé por mais de dois séculos, todavia suas manifestações culturais desapareceram ao longo do tempo. Porém nessa igreja reuniam-se as confrarias de negros. Era forma de auto afirmação e minutos de liberdade numa sociedade escravocrata e perversa. O essencial dessas confrarias ou irmandades era a sua íntima conexão com as cerimônias de coroação dos reis negros e momentos de encontrarem-se com os seus pares, coma comunhão que somente a religião católica, naquele momento histórico poderia propiciar. Esses cerimoniais, de acordo com a tradição africana, iniciaram-se com a figura de Chico Rei, ou Ganga Zumba Galanga, rei Congo dos Quicuios, que foi trazido como escravo para o Brasil, juntamente com sua corte, no princípio do século XVIII..Quando me entendi de gente, no final dos anos 60 e início dos 70, ao derredor da Igreja pastavam vacas e bodes, com seu pequeno cemitério secular abandonado, cheio de ossos ressequidos.

Os únicos freqüentadores dessa igreja eram os fiés morcegos. A imagem do Rosário para não ser roubada ficava guardada na casa de particulares.

Anualmente, após a procissão, rezava-se uma agoniada missa no meio do calorzão de matar... Era o mês de outubro. Lembro-me claramente de Eutímia Moreira (Timinha), cantando com sua forte voz a ladaínha de Nossa Senhora do Rosário, em latim e a procissão que saia às quatro e meia da tarde, em pleno sol-quente, às pressas, como quem quer acabar logo, pelas ruas da cidade, e alguns dias depois , "a subida" da imagem, tudo com o explodir das "bombas", que só o Icó sabe fazer daquela forma, como dizia minha amiga Zilma Almeida: "No Icó, até pra rezar é na base da bala".


Texto reeditado.


Criação de Washington Luiz Peixoto Vieiramailto:Vieirawlpv1@hotmail.com


Informações Adicionais:


A devoção à Nossa Senhora do Rosário vem de Portugal desde os séculos XV e XVI quando os negros já se congregavam nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário, nas terras lusitanas.
Inicialmente, conta a tradição, a devoção à Nossa Senhora do Rosário era realizada somente pelos brancos e se tornou popular com a famosa batalha de Lepanto em 1571, sobre os mouros foi, atribuída à intercessão direta da Virgem Maria.


Em 1496, o rei de Portugal, Dom Miguel, já se referia à "Confraria dos Pretos", fato que nos faz acreditar que os negros, em terras lusitanas, aceitaram o catolicismo como forma de tentar manter, através do sincretismo religioso, as suas devoções.
Com a criação dessas irmandades religiosas, que eram compostas basicamente por cativos, os soberanos negros passaram a ser eleitos nessas agremiações. As confrarias religiosas dos homens brancos tinham a missão de administrar os sacramentos, prestar assistência social, etc., enquanto as dos negros e mulatos tinham uma tarefa muito maior: a manutenção de sua identidade cultural.

Algumas da imagens acima, em montagens feitas por mim, são de Luan Sarmento, de seu blog Icó Arte Barroca, e outras imagens existentes no Orkut.

COISAS DO ICÓ: A INAUGURAÇÃO QUE NÃO ACONTECEU

Conta-nos a tradição que o Teatro do Icó foi construído por volta de 1860 pela Companhia de Teatro do Monsieur Pierre Franklin Théberg (1811 - 1864), o Dr. Pedro F. Théberge, e sua esposa a pianista e professora de música Madame Marie-Elise Soulé Théberge, com projeto arquitetônico de seu filho Engenheiro Henrique (1938- 1905).

Icó à época do império era habitada de uma fidalguia pé-dura², ciosa de si, na verdade uma gadocracia¹. O dinheiro obtido com a exportação dos produtos bovinos e do algodão fizeram daquela elite rural e urbana pensar ser a própria corte imperial. Cada coronel com rei na barriga. Ninguém queria ser menor que ninguém, no máximo igual e olhe lá... Escravaria abundante e servil, móveis e alfaias domésticas trazidos em lombo de burro do porto do Aracati e poucos títulos de nobreza: Um barão e um Visconde. Nada mais.

Vida de aparência, ostentada nas fachadas dos casarios nobres e da austeridade na vida privada de dar pena, revelada nos hábitos alimentares, dos queijos secos nos sótãos, das tapiocas e beijus guardadas nos caixões de farinha, de algum cuscuz com leite, tomado com parco café adoçado por rapadura do Cariri, o rotineiro baião-dois e de resto, alguma carne seca, paçoca de pilão e buchada de bode nos dias festivos. De forma que havia até ditos conhecidos naqueles tempos: "Moça do Icó, por cima cambraia de linho, por baixo mulambo só".

O Theatro do Dr. Pedro foi uma ousadia. Essa construção é o marco concreto de sua presença no Icó, e algo inédito, quando um particular destina recursos próprios numa obra que de certa forma era pública, embora a princípio fosse uma casa de espetáculos particular. Demonstra o espírito erudito do Dr. Théberge, ao mesmo tempo que reflete o grau de evolução cultural daquela sociedade do século XIX, ou pelo menos o que ele desejaria que ela se tornasse, mesmo que pelas aparências externas em sê-lo. Possivelmente essa obra destinava-se a acolher espetáculos itinerantes como também propiciar à sua esposa apresentar seu virtuosismo.

Maria Elisa era professora de piano. O casal havia aberto uma instituição de ensino de piano em Recife, então chamado de pianoforte e que era o instrumento da moda da elite. Essa escola veio a falir, dado a quantidade de professores renomados na capital pernambuca, talvez uma das razões da migração da família para o Ceará.

Certamente o Icó já tinha um número razoável de pianos-fortes, tocados (ou talvez batucados) pelas sinhazinhas sem estudo aprimorado do instrumento e não passem de objeto de adorno e ostentação nas casas nobres.

Fato foi que conta-se, em lendária estória secular, que a casa de espetáculos nunca foi realmente inaugurada como deveria ser naquele século XIX. No século XX, pelo que sei, já foi reinaugurado por vários prefeitos que se sucedem. Um inaugura, o outro deixa cair e um novo prefeito inaugura novamente...

A história ou estória conta que a abertura oficial fora marcada para o início da noite de um verão de 1860, toda a elite convidada mandou confeccionar seus trajes no melhor que podia. Mas ninguém queria chegar primeiro. Conta-se que mandavam a escravaria doméstica espiar o movimento e assim como ninguém chegava, as horas foram passando até escurecer de vez: ³

- Rosaro, corre até a Rua Larga e vê se já chegou alguém de importância! 
- Nhá Cândida, chegô ninguém nam, por lá ta só o povim miúdo, espiando de longe.
- Daqui um pouco tu vais de novo pra ver....


E aí, bulhufas, nada aconteceu. O velho Dr. Pedro ficou na porta esperando quem não ficou de chegar, fechou as portas e foi dormir, enfurecido com a "granfinagem" icoense.

Imagem: Montagem feita por Washington Peixoto utilizando-se figuras da época, desenhos de Debret. Dr. Pedro aparece de fraque junto a duas damas.

1.
Gadocracia: Aristocracia rural e urbana, cujo fundamento era o gado bovino, fator de ciclo econômico nos sertões nordestinos do século XVII ao XIX. Neologismo criado pelo autor deste blog, inspirado na palavra açucarocracia criada por Evaldo Cabral de Mello (Recife, 1936);




2. Pé-duro: S.m brasileiro. Trabalhador rural, Caipira; Casca-grossa; Depreciativo: Pequeno fazendeiro analfabeto da zona cacaueira ou de qualquer outro lugar;




3. Essa lenda ou história é narrada por Gustavo Barroso, in À Margem da História do Ceará " lembra a rivalidade entre as cidades de Icó e Aracati e cita o anedotário, criado pelos aracatienses, segundo o qual a centenária casa de espetáculos de Icó não teria sido inaugurada solenemente por completa ausência de convidados. O historiador reproduz a versão de que a inauguração oficial não ocorreu porque nenhum representante da elite da cidade quis correr o risco de ser o primeiro a chegar, receoso de que essa pontualidade pudesse ser interpretada como típica de um exibicionismo provinciano. Conforme citação de Gustavo Barroso, as famílias icoenses vestiram suas melhores roupas e permaneceram em alerta em suas casas, mandando escravos espionar o teatro, com ordem de retornar informados sobre a aparição dos primeiros convidados. Nessa espera, a noite teria passado e a festa inaugural não teria acontecido. http://www.ocedom.com/cultura/orgulho-de-ico/



CURIOSIDADE: (AUTORIA DE WLPV)






Á luz da cronologia dos fatos, consideremos o avanço cultural que foi a edificação de um teatro em pleno sertão do Ceará, pois o teatro do Mousier Théberge foi o primeiro da então Província do Ceará (1860), rivalizando com Aracati e Quixeramobim. Foi construído 47 anos após a construção do Teatro São João no Rio de Janeiro (1813) e 21 anos após a construção do Teatro Apolo (1839) o mais antigo do Recife e apenas nove anos após a construção do Teatro Santa Isabel (Recife) em 1851,então uma das maiores e mais importantes cidades brasileiras. E 36 anos mais antigo que o José de Alencar (1904), o mais famoso de Fortaleza (e do Ceará). Embora desde 1770 já existisse a Casa da Ópera (inaugurada no dia 6 de junho de 1770), em Ouro Preto, considerado o mais antigo das Américas. Portanto, Icó estava na linha de frente do que havia de moderno no Brasil e nas Américas.


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